O Despertar Crítico, Parte I: Hume e a Inspiração Cética de Kant
Sem dúvida, uma das frases mais famosas e conhecidas de Kant é aquela em que ele fala do seu famoso despertar do “sono dogmático”:
“Confesso francamente: foi a advertência de David Hume que, há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações, no campo da filosofia especulativa, uma orientação inteiramente diversa.”1
De fato, se acordo com Kant, foram as objeções de Hume à possibilidade de conhecer, de modo inteiramente racional, ou seja, necessário e universal, as relações entre as coisas na realidade, que fizeram com que ele notasse ser absolutamente necessário repensar o fundamento da metafísica, como a ciência que se ocuparia, justamente, com esse conhecimento racional das coisas. Só assim se poderia mostrar que, contrariamente ao que Hume pensava, não seria apenas uma ilusão, produzida pela nossa imaginação, o conhecimento que julgamos ter, no nosso dia a dia, das relações necessárias entre objetos. Para Kant, haveria, de fato, uma maneira de mostrar que, apesar do que Hume diz, estaríamos sim, em posse de um tal conhecimento; fazer isso, porém, só seria possível levando a sério primeiramente as objeções que Hume teria levantado em relação a essa possibilidade.
Por isso, antes de qualquer coisa, temos de nos perguntar: afinal, quais são as objeções que Hume coloca no que diz respeito à possibilidade de termos tal conhecimento necessário e universal das relações reais entre as coisas?
Em suas Investigações Sobre o Entendimento Humano, Hume faz uma distinção central entre dois tipos de questões no que concerne ao conhecimento humano: as relações de ideias e as questões de fato.
Mas o que seriam, exatamente, as relações de ideias? Relações de ideias seriam todas aquelas coisas que podemos conhecer e descobrir pura e simplesmente ao pensar sobre elas, e, portanto, independentemente da existência de qualquer coisa na realidade que corresponda ao que pensamos. Não importa se, no mundo lá fora, jamais encontramos um triângulo perfeito; sempre será verdade, da ideia de triângulo, que a soma dos seus ângulos é de 180 graus. A relação, justamente, entre a ideia de triângulo e a ideia de uma soma de ângulos igual a 180 graus é uma relação necessária, e nós descobrimos isso simplesmente ao pensar sobre essas ideias, sem que tenha que existir, na realidade, no mundo “lá fora”, qualquer coisa que corresponda, de fato, a elas. Em outras palavras: podemos ter um conhecimento inteiramente necessário e universal e, portanto, racional das relações entre ideias porque, para conhecer estas relações, basta pensá-las.
Algo diferente, porém, se dá com as questões de fato. Questões de fato são aquilo que diz respeito, pelo contrário, não simplesmente ao que pensamos, mas sim àquilo que, de fato, existe. Posso imaginar comigo mesmo com a maior clareza do mundo que a soma de todos os ângulos de um triângulo é sempre de 180 graus; isso, porém, não me permite saber se existe ou não no mundo algo que corresponda a essa ideia de triângulo. Afinal, aí, justamente, não está em jogo apenas o que pensamos, mas sim o que existe. E, do mero conhecimento das relações entre nossas ideias, de como uma ideia está necessariamente ligada a outra, não podemos concluir nada sobre o que, de fato, existe na realidade.
Mas então, continua Hume, por que meio buscamos ter um conhecimento sobre o que existe ou deixa de existir que seja tão necessário e universal quanto o conhecimento que temos da relação entre a ideia de triângulo e a soma de seus ângulos? Para Hume, o modo com que visamos normalmente alcançar esse conhecimento é estabelecendo relações de causa e efeito entre as coisas na realidade. Afinal, se pudermos saber, com toda certeza, que uma coisa é causa de outra, poderemos saber também, seguramente, que, se a primeira coisa existe, a outra também, como seu efeito (“Onde há fumaça, há fogo”, como se diz).
E é aí que reside todo o problema para Hume. Afinal, pense um pouco sobre isso: como sabemos com toda certeza que algo é necessariamente, causa de outra coisa? O que nos permite saber que uma coisa causa necessariamente a outra, ou que uma coisa é, necessariamente, efeito de outra? Pensemos no exemplo do fogo e da fumaça: acostumamo-nos a pensar e tratar mesmo como evidente que onde há fumaça, há fogo e que, portanto, o fogo é a causa da fumaça. Mas, afinal, como podemos mostrar que o fogo é, necessariamente, causa da fumaça? Se ele é a causa, o que faz com que ele seja a causa? Ou, colocando de outra maneira: o que percebemos, no fogo, como sendo aquilo que faz com que ele seja, necessariamente, a causa da fumaça?
Nesse momento, talvez uma resposta mais ou menos óbvia tenha lhe vindo à cabeça: ora, é fácil: sempre que acendemos um fogo, vemos fumaça sair dele. É assim que sabemos que o fogo é a causa da fumaça. Afinal, quem esperaria que, ao se acender um fogo, não saísse fumaça dele?
Porém, sem perceber, ao responder dessa maneira, está-se dando, na verdade, munição para Hume. De fato, a isso, é provável que ele respondesse algo como: “Justamente! O que te leva a julgar o fogo como causa da fumaça é o fato de que, sempre que você percebeu o fogo, você percebeu a fumaça depois. Isso te levou a fazer uma associação entre o fogo e a fumaça, de tal modo que, sempre que você percebe o primeiro, você já espera perceber o segundo. Mas essa associação que você faz entre fogo e fumaça é, afinal, o conhecimento de uma relação absolutamente necessária entre fogo e fumaça? Afinal, só por que você sempre viu os dois juntos, disso se segue que eles nunca pudessem ocorrer separados?”
E esse, de fato, é um dos pontos fundamentais de Hume: que duas coisas tenham, até o momento, sucedido uma à outra em nossa experiência, não implica que continuará sempre a ser assim. Em algum momento, pode ser que elas ocorram separado. Do mero fato de que foi sempre assim, não se segue que será sempre assim. Por exemplo: até o presente momento, é verdade para nós que o sol sempre nasce no dia seguinte. Mas, ao mesmo tempo, do fato do Sol ter sempre nascido, não podemos concluir que ele sempre nascerá. Afinal, é perfeitamente possível - mesmo provável - que, eventualmente, ele deixará de existir. Que algo tenha sempre ocorrido de algum modo em nossa experiência não implica que sempre continuará a ocorrer assim. E, portanto, que sempre em nossa experiência a fumaça tenha se seguido ao fogo não implica que essa sucessão não possa, em algum momento, deixar de ocorrer.
Por isso, para dizer que há uma relação necessária de causa e efeito entre fogo e fumaça, precisaríamos de mais do que a mera percepção constante da sucessão de ambos na experiência. Mas é justamente esse “mais” que Hume pensa não ser possível conseguir. Para saber que uma coisa é necessariamente causa de outra, teríamos de poder conhecer os “poderes internos” por meio dos quais ela produziria essa outra coisa. Tudo que conhecemos das coisas no mundo, porém, são as percepções que temos delas, e como essas percepções se sucedem umas às outras - não o que as coisas seriam por si mesmas, e os poderes que elas por si mesmas teriam de causar outras coisas. Logo, não podemos, no que diz respeito a questões de fato, ter nenhum conhecimento racional, ou seja, um conhecimento que nos permita estabelecer o que existe e o que não existe por meio de relações necessárias e universais entre as coisas.
***
Mas por que, afinal, essas objeções de Hume a um conhecimento racional daquilo que existe teriam um peso tão grande para Kant, a ponto dele afirmar que teria sido esse filósofo que o despertou de seu sono dogmático? Porque o que Hume teria mostrado para Kant, nos termos mais gerais, teria sido: não basta sabermos as relações entre os nossos pensamentos, para sabermos as relações entre as coisas na realidade. O mero pensamento não nos diz nada sobre como as coisas de fato são e sobre como podemos de fato conhecê-las, de modo que toda tentativa de conhecer o real por meio de meros pensamentos só pode ser fruto de uma maneira de pensar dogmática e, em última instância, insustentável.
Ora, mas, como se sabe, apesar de ter sido desperto de seu sono dogmático por Hume, quando acordou, o que Kant viu não foi o mesmo que Hume via; pois para Hume, não havia nenhuma maneira de ter um conhecimento absolutamente racional para além do nosso conhecimento de nossas próprias ideias e que se referisse à realidade, às coisas lá fora. Kant, porém, apesar das objeções de Hume, pensa ainda que tal conhecimento seria possível, e se esforça para mostrá-lo. E é a maneira com que Kant se esforça para fazer isso, e para superar as objeções céticas de Hume, que será objeto de nosso próximo post dessa série (se ele vier a acontecer, né, afinal, que garantia vocês têm do que vai acontecer amanhã? :P)
KANT, I. Prolegômenos a toda a metafísica futura. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1998, p. 17.