Por que estudar o idealismo alemão?
Não é incomum que as pessoas, mesmo da filosofia, fiquem chocadas ou perplexas quando digo que, no meu mestrado e no meu doutorado, não apenas estudei Hegel, esse autor bicho-papão da filosofia, como, para além disso, também estudei e me aprofundei em outros filósofos do mesmo período não tão menos bicho-papões, como Kant, Fichte ou Schelling. Há uma percepção geral não apenas de que esses filósofos seriam extremamente complicados, complexos e obscuros; muitas vezes, e inclusive na própria filosofia, se tem a impressão de que eles seriam representantes de todo o tipo de “baboseira filosófica” do pior tipo, dedicados a formularem sistemas de pensamento e proposições absurdamente difíceis e mesmo indecifráveis que, em última instância, não significariam nada, e não teriam nenhuma relevância para nossa vida, quer no nosso dia a dia, quer mesmo no âmbito da especulação filosófica especializada.
Essa impressão comum do idealismo alemão parece, em todo o caso, ter um pressuposto comum: o de que tudo que é demasiado abstrato não tem nenhuma utilidade e não têm nenhuma verdadeira consequência para a maneira com que vivemos e pensamos sobre o que é importante para nós. É como se, dessa perspectiva, só valesse a pena a filosofia que exige até um número máximo de passos de abstração. Ou talvez, para sermos mais exatos: como se só valesse a pena a filosofia em que, em nenhum momento, um conjunto de abstrações pode operar e ser operado por si mesmo, sem ter imediatamente diante de si alguma experiência concreta mais imediata como pano de fundo dessa operação filosófica.
Esse repúdio à abstração dos idealistas alemães era, inclusive, presente na própria época em que eles escreverão, e eles eram familiares com ela. É isso, inclusive, que leva Hegel a escrever um pequeno texto chamado “Quem pensa abstratamente?”, no qual tenta se dirigir, de um modo um tanto irônico e sarcástico (e, infelizmente, às vezes, um tanto elitista também), a essas objeções à sua filosofia, segundo as quais ela não lidaria com nada que dissesse respeito à nossa realidade concreta e, por isso, deveria ser repudiada por sua “abstração”.
Para aqueles que não conhecem muito de Hegel, pode ser um choque saber que ele diz, em diversos momentos de suas obras, que a filosofia nada mais é do que inimiga da abstração. Isso pode parecer, a princípio, o ápice da ironia ou da falta de consciência de si; afinal, como Hegel, esse filósofo considerado um dos mais difíceis de todos os tempos, pode afirmar ser, ele mesmo, inimigo da abstração?
Para responder a essa pergunta, temos que compreender um pouco melhor o que é, para Hegel, afinal, abstração. Em termos gerais, a abstração pode ser compreendida como a operação por meio da qual tratamos dois termos opostos como existindo de maneira inteiramente independente um em relação ao outro. Pela abstração, separamos a verdade da falsidade, a aparência do essencial, o infinito do finito, o absoluto do relativo.
Notem que, em um primeiro momento, isso pode parecer (e de fato, é), uma concepção distinta de abstração do que aquela que parece estar por trás das objeções que se faz ao idealismo alemão: lá, abstração parece significar aquilo que não tem relação direta com a nossa experiência imediata. Entretanto, o importante aqui é que, quer na definição de “senso comum” de abstração, quer na definição hegeliana, há um pressuposto comum: abstração é aquilo que nos afasta da realidade. E aqueles que criticam Hegel por sua abstração, tendem a criticá-la na medida em que pensam que o afastamento de sua filosofia da experiência imediata cotidiana seria um afastamento da própria realidade e, por isso, uma abstração que deveria ser evitada.
Ora, se Hegel questiona esse conceito de abstração e propõe um outro, isso se deve, justamente, ao fato de que ele questiona se a experiência imediata é aquilo que nos deixa, de fato, mais próximos da realidade. Afinal, será que a experiência que temos mais imediatamente das coisas, é aquilo que nos diz, de modo mais confiável, o que elas realmente são? Afinal, não faltam exemplos para nós - sobretudo em tempos de Fake News - de coisas com que temos contato imediato que, porém, estão longe de serem verdadeiras. Temos muitas impressões imediatas sobre as coisas que, não necessariamente, correspondem ao que elas são - e que, muitas vezes, se apoiam em nossos próprios preconceitos e condicionamentos, que fazem com que as coisas apareçam imediatamente para nós de um determinado jeito, sem que o jeito com que elas aparecem para nós seja, porém, o mais próximo da realidade.
Se é assim, a “aposta” de Hegel (se é que se pode chamá-la desse modo) é, então, a seguinte: para nos aproximarmos da realidade concreta, não podemos nos basear apenas na experiência imediata; temos, antes de pensar essa realidade. E, pensar significa, justamente, ir além das simplificações que fazemos na maneira imediata com que percebemos as coisas. Simplificações que podemos, inclusive, chamar de abstrações - porque elas separam aquilo que, na realidade está unido. Se for assim, então, o pensamento de Hegel seria difícil, não porque ele é “abstrato” demais e nos afasta da realidade, mas porque ele nos obriga a pensar a realidade como sendo mais complexa do que as simplificações com que as percebemos em nosso dia a dia.
Essas considerações que, aqui, fizemos sobre Hegel em particular, me parecem poder ser expandidas ao idealismo alemão em geral, e nos permitir responder à pergunta: afinal, por que estudar o idealismo alemão? De maneira muito abreviada, poderíamos dizer: porque nem sempre aquilo que é mais familiar e imediato para nós é aquilo que mais nos ensina sobre a realidade em que vivemos. Às vezes, para podermos compreender melhor tudo aquilo que faz parte de nossa realidade - nossas ações, nossos (pretensos) conhecimentos, nossas relações com os outros, nossas condições de vida e existenciais -, temos de pensar sobre elas, de um modo que nos afasta do nosso modo imediato de compreendê-las, ao mesmo tempo em que é capaz de transformá-lo radicalmente. E para isso, o estudo do idealismo alemão é mais do que apropriado e recomendável: por meio dele, somos forçados a pensar e repensar radicalmente nossos pressupostos imediatos sobre o que é o conhecimento, a razão, a moral, a liberdade, a vida, a história, a arte, para mencionar apenas alguns dos temas mais gerais e abrangentes - todos, centrais para compreendermos a nossa realidade hoje. E por isso, gostaria de concluir com uma citação de Fichte (outro dos grandes idealistas alemães), que, não por acaso, expressa perfeitamente essa ideia de por que, afinal, deveríamos estudar o idealismo alemão:
“Pessoas refinadas, do chamado ‘grande mundo’, zombaram de muitas questões que os filósofos criaram, considerando-as sutilezas vazias e devaneios pedantes. (…) E elas certamente possuem razão e sua zombaria atinge o devaneador, caso seja direcionada a ele, que investiga aquelas questões com ansiosa atenção, sem saber para que precisará das respostas que ele gostaria de receber, criando questões pelo simples gosto de recriá-las. Mas a zombaria dessas pessoas não atinge quem reconhece a importância de tais investigações para o todo do sistema e quem compreende a conexão íntima, ainda que longínqua, entre estas investigações e aquelas verdades sobre as quais se apoiam a eticidade.”
(FICHTE, J. G. Sobre o Espírito e a Letra da Filosofia. Tradução: Ulisses Razzante Vaccari. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2014, p. 301)